Verbetes Dissenso/Rancière

Verbetistas:
Bruno Moreno - Gabriel Máximo - Giuliana Simões - Isabela Racz - Izadora Borges - Luiza Romão - Marcela Pereyra Páez - Marcela Carbone - Marina Merlino - Vinicius Pires - Zebba Dal Farra



DEMOCRACIA - CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA - EMANCIPAÇÃO - EMBRUTECIMENTO - IGUALDADE - MUNDO SENSÍVEL - NÃO-CONTADOS - POLÍCIA


  • DEMOCRACIA

Democracia é partir do princípio de que, antes de alguns beberem água, todos têm sede.
É configurar coletivos que possam debater. É se posicionar a partir do debate.
Não é calar e eliminar a oposição do seu espaço de ação, com a tropa de choque.
Democracia  é não precisar gritar para ser ouvido.


  • CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA

A contradição performativa se dá quando, havendo uma situação envolvendo dois interlocutores, um deles se recusa a ouvir e a considerar aquilo que o outro diz. Essa situação é impraticável para que haja um diálogo que leve os discutidores a ultrapassarem seus próprios pontos de vistas, evoluindo. Para que aconteça esta evolução, é preciso que os dois entrem em confronto argumentativo, cada qual expondo suas ideias, podendo assim entrar no terreno da contradição ou não-contradição. Negando esta abertura que é premissa para que exista uma situação dialogal real, o indivíduo nega a própria racionalidade necessária para que seja um discutidor de fato.
É interessante ressaltar que em seu texto “O dissenso”, Rancière enuncia bastante claramente, se comparado com outros termos, aquilo que define como contradição performativa. Ele escreve: “O núcleo dessa lógica é a prova da contradição performativa: se um dos parceiros se recusa a ouvir o que o outro diz ou a justificar o que ele próprio diz, entra em contradição com o que sua posição mesma de discutidor requer, ele próprio não se reconhece como locutor racional.”


  • CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA

O ser humano é um ser vivo racional e que, socialmente inserido, tem a capacidade de ouvir e falar.
Sendo assim, ele é um discutidor; essa condição foi imposta a ele biologicamente. Quando ele quer discutir
e não discute por alguma razão, entra em contradição performativa porque ou ele próprio não se reconhece
como discutidor ou ele não é reconhecido por outro.


  • CONTRADIÇÃO PERFORMATIVA

Este é um país onde a vida política é tão solene, tão mentirosa, tão cerimonial e nos fere tanto, que todo mundo percebe o solene como o inimigo.
para mim, o solene se define de uma maneira muito fácil: o solene é aquilo que não aceita outra visão que não a própria.
uma obra de teatro de humor pode ser muito solene na medida em que estabelece bases previamente definidas acerca do que deverá me fazer rir ou não. Essa é para mim, a forma de quem faz humor com a técnica do clown.
A obra sente essas regras e é a maneira que a obra tem de rir de algo. Não aceita outras visões.
para dar um exemplo extremo, a mímica também é solene. Se eu tento me comover com um mimo que ficou preso dentro de uma caixa e não pode sair, me é impossível.
não admite uma visão que está além de sua própria regra. Assim, o solene para mim não tem a ver com o sério.
creio que o espectador tem o direito de intervir na obra com o seu ponto de vista e para ver o que acontece a partir de outro ponto de vista.
99% do teatro que se vê é solene.
99% das maneiras que se analisa o teatro é solene, porque justamente o que os críticos frequentemente fazem é estudar a obra para descobrir qual é a regra que estabelece o ponto de vista, e naturalmente se termina por negar refinamentos ao objeto em vez de lhe dar novos tons.

  • EMANCIPAÇÃO

(conversa baseada em fatos reais)
São Paulo, 2011.
Um pai e uma filha de 8 anos conversam no final do dia:
Pai – Filha, o que você aprendeu hoje na escola?
Filha – Pai, na escola a gente não aprende só o que o professor ensina, a gente aprende coisas que pensamos sozinhas, mas são coisas que pensamos só pelo fato de estarmos na escola.

“O que pode, essencialmente, um emancipado é ser emancipador: fornecer não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual à sua”. J.Rancière, O mestre ignorante, p.64.

  • EMBRUTECIMENTO

Pode ser entendido como a verificação de uma incapacidade pelo mesmo ato que pretende reduzi-la. Este ato pode ser entendido como a tentativa de transmissão de saber do mestre para o aprendiz. Esta transmissão aparece dentro da lógica da explicação. O mestre é aquele que conhece métodos cada vez melhores de fazer o aluno compreender aquilo que ele deve aprender, através de explicações cada vez mais bem elaboradas. Essas explicações ignoram o conhecimento do aprendiz, pois este deve compreender o conhecimento do mestre e não necessariamente, verificar sua própria inteligência. E este processo, que pode ser lido como embrutecedor, pode levar a compreensão de que nada pode ser compreendido a não ser que lhe seja explicado.

“Ali estavam a mesa de bilhar e a minha escrivaninha, o lugar onde eu decorei, sozinho, a inospitalidade de todos os saberes. Ali eu jogava munição para dentro da cabeça, eu assistia à munição entrando para dentro da cabeça, e eu não ligava TV nem rádio, pois eu temia que as munições se misturassem, que eu escrevesse uma notícia em vez de um número. Ali eu segurei minha cabeça e atravessei a época-colégio! Na época-colégio eu aprendi a disciplina do massacre. Eu aprendi que a realidade inteira não passava de mentira. Soube da GRANDE FALCATRUA. Eu sabia que eu era um idiota, um destituído de qualquer inteligência, só podia ser isso, o silogismo era fácil, afinal, ali no lugar-colégio, nenhuma sílaba, nenhum teorema, nenhuma palavra fizeram o menor sentido! A culpa só podia ser minha! Eu me dizia: ‘Você não sabe pensar! Mas é necessário derrotar aquelas provas e não ser mandado para uma escola de débeis e de anômalos. Tudo é memória e imitação, ele-eu me dizia para mim. Os animais da selva sabem imitar. Você é como eles!’ Então eu sentava na escrivaninha, ereto como um guarda romano, e formalizava todos os tipos de soluções possíveis no repertório dos problemas. Geralmente eram três ou quatro variações de estruturas. No mais, só se alteravam os números. No dia seguinte eu ficava de prontidão e, ao olhar a lousa ou ler a prova, fazia uma identificação repentina. Se isso não ocorresse, eu era invadido pela tempestade de pânico e o meu corpo podia se desmantelar num oceano de formigamentos. Mas à noite eu sempre tinha rezado a um deus para que ele mantivesse minha cabeça intacta: ‘Peço ao senhor que tudo o que eu coloquei em minha cabeça esteja ainda lá amanhã de manhã e que eu seja capaz de recordar. Faça isso pra mim.’ O excepcional é que ‘o meu método’ dava certo e eu conseguia fazer quase tudo sem compreender absolutamente nada. Passei a ser tomado como um dos melhores alunos da escola. Eu ocultava meu método com toda artimanha possível, temendo a descoberta do segredo. Durante anos fui eleito pelos colegas o ‘presidente da classe’, os professores corroboravam meu nome. Minha popularidade e liderança eram jogos de astúcia e eu as estranhava muito. Eu sabia que minha vida era uma guerra desconhecida, uma batalha no planeta diferente.”

“Eu preciso da palavra gnóstica, da palavra maniqueu e eu preciso dela não porque eu não saiba falar as palavras do mundo; eu sei imitá-las muito bem, eu sei imitar a palavra-correta, a palavra “nossa-que-cara-culto!”, a palavra “olha-como-ele-é-articulado”, eu sei, eu falo de cabeça cheia, eu tirei dez, a chamada nota máxima em quase todos os trabalhos que escrevi numa famosa instituição universitária e ali, naquele centro de excelência, naquela fábrica de inseminação de bons alunos, naquele exército do saber bem e do dizer bem, eu não emudeci e eu não me saí de todo mal, e eu convivi com muitos filhotes-de-papai que se tornaram filhotes-de-orientador, isto é, gente que seguiu sem gemer, sem o menor conflito, essa monstruosidade chamada homem-de-carreira, chamada homem-de-sucesso e que trocou o papá-gosta-menino-eu pelo cabeça-professor-ama-texto-eu. Eu conheci a violência intrínseca dessas pequenas criaturas culturais, criaturas que riscavam do convívio quem dissesse errado a coisa-Descartes e a coisa-Freud, e que, embora não tivessem os bens materiais como a coisa-Mercedes e a namorada-coisa-gostosa-que-vai-vernissage, tinham muitos bens culturais dentro da cabeça e adoravam a coisa-Kant, a coisa-Fitche e as belezas da literatura assimilada na bolsa de Paris.”
(Excertos retirados de Certeza do Agora, de Juliano Garcia Pessanha)

  • IGUALDADE

“O Dissenso” de Jacques Rancière
    Dedução simples: A igualdade cívica é relativa à ausência de fundamentos de dominação.

    IGUALDADE é o único princípio da Política.

    Essa IGUALDADE se manifesta através do DISSENSO: através da construção de uma perturbação na lógica de dominação (ou seja, na ordem policial que distribui as funções do mundo). *

    Política é a perturbação da Ordem Policial inserindo nela um pressuposto que lhe é heterogêneo (diferente).
Esse pressuposto é (ou pode ser) o entendimento de que qualquer ser falante é IGUAL à qualquer outro ser falante.

    Sobre a fábula (pág.8):
Braços plebeus e centro patrício são IGUALMENTE necessários, mas NÃO IGUALMENTE dignos.
Para que se aceite a fábula da DESIGUALDADE é preciso que os plebeus  à COMPREENDAM. Para isso é preciso que sejam seres falantes IGUAIS aos demais. Os patrícios não podem provar a DESIGUALDADE sem aceitar a primeira premissa de IGUALDADE.

    OBS: Dissenso = conflito sobre a forma de ver e compreender o mundo => choque entre formas que não se reconhecem => onde se revelam juntos dois mundos sensíveis.

    Aristóteles: 2 Formas de Comando:
1) Política: IGUAL sobre IGUAL.
2) Doméstica/ Despótica: Poder de UM sobre o OUTRO.

    Exemplo da luta operária: Mostra a relação dessas duas formas de comando, desses dois mundos: Cria um vínculo IGUALITÁRIO que liga os dois mundos em um “lugar” comum.

    * A IGUALDADE se expressa através do DISSENSO porque este se concretiza (evidenciando o encontro de dois mundos sensíveis) através da criação desse Vínculo Igualitário.

    OBS: Consenso: Objetivação total dos dados e papéis à distribuir.
Sistema perceptivo que compreende: povo político = população real; atores políticos = partes do corpo social.
Efetua uma redução permanente que nos apresenta uma IGUALDADE IRREDUTÍVEL entre a SOMA TOTAL das OPINIÕES enunciáveis e a SOMA TOTAL das PARTES da POPULAÇÃO.

    OBS: (Dicionário Larousse) Igualdade: 1. Qualidade do que é igual (…) 3. Uniformidade, Identidade (…)
Igual: 1. Que tem a mesma natureza, quantidade ou qualidade; idêntico (…) 3. Que não varia (…).

  • MUNDO SENSÍVEL

O modo como se sente a vida, o modo como se sente os fatos é parte intrínseca do real.

  • NÃO-CONTADOS

“O interlocutor dissensual fala em dois mundos ao mesmo tempo e a relação argumentativa entre esses dois mundos não é dada senão pela invenção conflitual. Não há contradição na posição dos patrícios. Há a lógica sensível de um mundo, e o problema é construir pela fala um outro mundo sensível.” (Rancière, p. 377)

O que mais me interessa no quesito “não-contados” é a dialética interna de sua posição. Ao mesmo tempo em que eles estão inseridos na partilha do sensível (e esse pressuposto já exclui as falsas tentativas revolucionárias de alguns grupos de se ‘isolar’ do sistema e criar zonas alternativas de convivência), eles também estão excluídos da distribuição de lugares e funções desse sensível. Essa posição contraditória, de ser tanto pertencente quanto renegado, é o que permite o olhar crítico e questionador do “não-contado”. Para Rancière, a verdadeira ação política só pode vir desses agentes sociais, pois são eles os sujeitos capazes de tornar visível aquilo que, apesar de já existir, não está autorizado pela polícia a ser visto, enunciado. Resta-nos indagar/pesquisar quais são as formas artísticas de provocar essa “invenção conflitual”, de transformar o artista em agente político, em sujeito não-contado.
Um exemplo próximo foi a intervenção com as cadeiras em frente à base da Polícia Militar. Nós éramos alunos, continuamos sendo alunos. Porém, concomitantemente, assumimos outra posição: passamos a falar em “dois mundos ao mesmo tempo”. De categoria estudantil (e, portanto, com funções e espaços bem definidos) passamos a representar também um coletivo de sem-nomes – que exatamente por não conseguir ser nomeado (lembremos do policial indagando: “Vocês estão em aula? São alunos”) conseguiu provocar uma situação dissensual. Nesse caso, a rua (espaço autorizado somente para o tráfego) ganhou outra dimensão (estudo/protesto/diálogo), recuperando seu caráter essencialmente público. Mais do que isso, a construção desse outro repartimento do sensível só foi possível pela fala, pela oposição entre esse grupo de não-contados e um representante da polícia (que em dado momento abandona sua posição “oficial” para também se integrar, mesmo que no discurso, a esse coletivo): uma situação que aparentemente não continha contradição passou a ter, o invisível se materializou.

  • POLÍCIA

“O que se passa, com efeito, quando as forças da ordem são enviadas para reprimir uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função. [...] Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí seu lugar. E, aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: 'Vamos circular, não há nada para ver'." (RANCIÈRE, Jacques. "O dissenso" in A Crise da Razão, São Paulo, 1996, p.373)

Podemos notar a polícia presente em nossa realidade uspiana não só nas bases móveis ou nos veículos que circulam; podemos notá-la em uma atitude clara do reitor de reconfigurar os espaços e suas funções, ao estabelecer como certa a mudança da ECA para um novo prédio. Ao reorganizar a escola numa construção que quando não elimina, reduz ao mínimo do mínimo os espaços de discussão, reunião, e manifestação dos estudantes, exclui os órgãos de debate e organização dos trabalhadores, e separa cada professor em sua caixinha, a "chefia" deixa evidente uma mensagem que não é nada senão policial: 'coloquem-se em seus lugares. Os lugares que nós decidimos. Os lugares que nós etiquetamos.'

Polícia/Política.
“Os sujeitos políticos não existem como entidades estáveis. Existem como sujeitos em ato, como capacidades pontuais e locais de construir, em sua universalidade virtual, aqueles mundos polêmicos que desfazem a ordem policial. Portanto são sempre precários, sempre suscetíveis de se confundir de novo com simples parcela do corpo social que pedem apenas a otimização de sua parte. Se a política é um desvio singular do curso “normal” da dominação, isso quer dizer isso quer dizer que está sempre ameaçada de se dissipar. Ora, a forma mais radical dessa dissipação não é o simples desaparecimento, é a confusão com o seu contrário a polícia.”                                                                Dissenso. J. Rancière,  p.378.
(...)
ANTÍGONA – O mais apavorado é o que semeia o medo. A violência é mãe da violência. Ontem foi meu irmão. Hoje sou eu. A quem, agora, se dirige tua intimidação?
CREONTE – A todos que pregam a desunião em Tebas.
ANTÍGONA – A eterna ameaça: a desunião enfraquecerá a pátria e ela cairá nas mãos de forças estrangeiras. Assim o governante obriga o cidadão a curvar a cabeça a qualquer prepotência.
Trecho de Antígona, Sófocles, tradução Millôr Fernandes, p.30

A pedagogia ou a instrução é o domínio da polícia e da filoalétheia nas instituições educacionais: é o governo dos “que sabem”, a organização, a estruturação e a legitimação dos saberes e dos métodos para transmiti-los, o reino da razão explicadora, como sugere J. Jacotot em o mestre ignorante. Ao contrário, a educação é o governo dos que “não sabem”, dos incompetentes, dos inábeis. 
Trecho de Walter O. Kohan: “Um outro estranho estrangeiro: entre a pedagogia e a educação: entre a polícia e a política” In: “Infância, estrangeiridade e educação.” Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SENSÍVEL
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.
1O sensível se faz como tríade de espaço, tempo e tipo de atividade. Podemos pensar, portanto, que há um sensível pessoal ou privado, que supõe a presença de um outro: um sensível em relação. Talvez pudéssemos dizer de um sensível íntimo, como ressonância das percepções do espaço e do tempo: do que se escuta e se diz, do que se toca, do que se cheira, do que se prova e do que se vê. E há um sensível comum partilhado, cujo
espaço e tempo não são necessariamente públicos. A emancipação parte do princípio oposto, o princípio da igualdade. Ela começa quando dispensamos a oposição entre olhar e agir e entendemos que a distribuição do próprio visível faz parte da configuração de dominação e sujeição.
Quem partilha o sensível?
(…)
1 Jacques Rancière. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 15.



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